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Polícia que mata

O Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), mostra que as agressões contra jornalistas, em 2015, tiveram como principais autores os policiais militares. A partir desse dado, o Versão dos Jornalistas buscou entender a dimensão da violência da polícia brasileira e possíveis soluções para melhorar este quadro. Em reportagem especial, confira o alarmante resultado de políticas equivocadas e constante impunidade.

 

Texto: Douglas Roehrs

 

O último Dia das Crianças, 12 de outubro, marcará para sempre a vida do pescador Alexandre Benedito Inácio, 36, morador de Navegantes, Santa Catarina. Nessa data, Alifer dos Santos Inácio, filho de 13 anos, foi morto a tiros pela polícia, ao lado de outras três pessoas. Segundo a versão oficial, um suspeito, após ser feita a abordagem, correu para dentro de casa e houve troca de tiros. Moradores do bairro Meia Praia relatam que a polícia teria chegado, em um carro descaracterizado, já atirando.

 

Após o cordão de isolamento ser rompido por outro pai de um dos mortos, a polícia partiu para cima da população com porradas de cassetete, balas de borracha, spray de pimenta e granadas de som e luz. Entre os atingidos estava Sandro Silva, jornalista do Diarinho, veículo de comunicação catarinense, que levou um tiro de bala de borracha no joelho.

Foto: Sandro Silva / Arquivo pessoal

 

Mesmo que Silva tenha se identificado como profissional da imprensa, usando inclusive crachá, um dos policiais mirou na sua perna e atirou. “Ainda não consigo entender por que a polícia fez aquilo. Foi uma coisa de tempos de ditadura”, questiona-se o jornalista.

 

Antes de a comunidade ser alvo de violência desproporcional, outro fato chamou a atenção de Silva. Quando a advogada chamada pelos moradores, ao lado dele e de outro jornalista, foi falar com os policiais, “os caras apontaram as armas e gritaram ‘fora porra, sai’”. “Quando jornalista e advogado têm sua atuação profissional impedida, o pouco da democracia que temos está indo pras cucuias”, enfatiza Silva, que nunca passou por situação semelhante em 30 anos de profissão.

 

Apesar de grave, seu caso não é isolado. O Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, da FENAJ, mostra que as agressões contra jornalistas, em 2015, tiveram como principais autores os policiais militares, especialmente nos casos registrados em manifestações de rua. A categoria foi responsável por 28 das 137 agressões.

 

“As polícias militares têm dado demonstrações de que não estão preparadas para atuar na garantia da segurança da população. A violência policial é, de fato, uma ameaça à sociedade e à categoria dos jornalistas”, enfatiza Maria José Braga, presidenta da FENAJ.

 

A recorrente impunidade dos excessos cometidos pela polícia é ressaltada por Sandro Silva, que não sabe se prestará queixa à corregedoria da polícia militar: “Não tenho fé que seja apurado. Nesses 30 anos, fiz várias denúncias e nunca obtive grandes resultados”.

 

Imagens: Sandro Silva / Diarinho

 

Ninguém tem o direito de matar

 

A chama, rubra como sangue, transforma-se num negro que se agiganta e tinge o céu de Porto Alegre denunciando novo conflito. Dois ônibus e um lotação são incendiados em resposta à morte de Ronaldo Lima, 18, que, naquela manhã do dia 3 de setembro de 2015, levou um tiro nas costas disparado por um policial. Na versão da Brigada Militar, ele estaria armado e teria reagido. Moradores da comunidade conhecida por Buraco Quente, no Morro Santa Tereza, afirmam que ele havia se rendido.

 

“Eles chegaram atirando, o Ronaldo se rendeu e mandaram ele correr. Quando ele foi correr, dispararam nas costas”, relata Marina Lima, 22, irmã de Sembinha, como carinhosamente o chamava. No dia, em meio à confusão, ao encontrar Ronaldo jogado no chão, já sem vida, repetia “mano, volta mano”, em estado de choque. Conforme conta, os policiais não deixaram que sua irmã chamasse atendimento médico, além de debocharem da família. Tais ações foram combustível para que a população se revoltasse, pois, além dos insultos e da violência desmedida, que foi repetida depois pela tropa de choque, viram Ronaldo crescer. “Ele era um menino bom. Não importa o que ele fazia, ninguém tem direito de matar ninguém”, indigna-se Marina.

 

Foi realizado um Inquérito Policial Militar, que resultou no indiciamento de três profissionais. Passado mais de um ano, o inquérito, que corre em sigilo, está no Judiciário. À reportagem, o 1º Batalhão de Polícia Militar não respondeu às acusações da comunidade. Enquanto isso, os policiais atuam normalmente, pois só serão afastados caso haja uma condenação, conforme contou o ex-comandante do 1º BPM, tenente-coronel Kleber Goulart, durante entrevista à época do indiciamento.

 

Para o professor de psicologia da UFRJ e oficial da reserva da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro, Pedro Paulo Bicalho, esse caso pode ser um exemplo do quanto é preciso trabalhar modelos de uso progressivo da força na formação policial. “Fazer segurança pública não significa matar”, ressalta.

 

Os números da letalidade da polícia evidenciam a carência de treinamento adequado constatada por Bicalho. O 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica que 3.345 pessoas foram mortas pela polícia em 2015, um aumento significativo ao já alarmante número de 2014, que foi de 3.146 mortos.

 

“A polícia brasileira mata em cinco anos o que a norte-americana mata em 30”, afirma o professor de Direito da PUCRS Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Muitos disparos, conforme conta, são dados quando já há rendição, e os casos não são resolvidos. Há situações de abuso de autoridade na relação com cidadãos e a tendência é que esses casos se repitam sem mecanismos de controle efetivos.

 

Alto comissário da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos, Zeid Al Hussein já alertou que o Brasil enfrenta um "problema gigantesco". Para ele, “aqueles suspeitos de conduzir ou cometer violações aos direitos humanos, sejam eles da polícia ou não, precisam ser punidos. Trata-se de algo muito sério”.

 

Em seu relatório anual O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, apresentando um balanço dos direitos humanos em mais de 160 países, a Anistia Internacional destaca que policiais responsáveis por execuções extrajudiciais desfrutam de quase total impunidade. Por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, das 220 investigações sobre homicídios cometidos por policiais abertas em 2011, houve, até o ano passado, somente um caso em que um policial foi indiciado. Em abril de 2015, 183 dessas investigações continuavam abertas.

 

Aniquilamento do eu

 

O treinamento militar para policiais que atendem à população é criticado pela psicóloga Luciane Engel. Ela, que possui mestrado na área e atua no sistema prisional gaúcho, ressalta os efeitos negativos ao submeterem policiais a uma situação extrema de estresse e de humilhação durante o treinamento para se tornarem policiais.

 

“Não se quer que o sujeito pense”, lamenta. A própria instituição faz o profissional se colocar em uma condição na qual um dos efeitos psicológicos é de apenas obedecer ordens ou de subvertê-las à margem da lei.  Viver sob as regras do local e passar o tempo todo com as mesmas pessoas acaba gerando uma mortificação de quem o sujeito realmente é, “quase como um aniquilamento do eu”.

 

Bicalho acredita que haveria uma melhora se tivéssemos uma organização de segurança baseada nos preceitos civis: “O modelo militar atrapalha as discussões necessárias”.

 

A doutora em Sociologia, professora da UFRGS e membro do grupo de pesquisa Violência e Cidadania, Letícia Schabbach, diz que não há estímulo implícito e explícito à promoção de direitos humanos nos cursos de formação e na atuação policial. “Em geral, o que percebemos nas Academias de Polícia é o predomínio do currículo oculto – nas relações e linguagens cotidianas – que deslegitima uma segurança cidadã e uma polícia respeitadora dos direitos”, esclarece.

 

Existe uma matriz curricular que inclui direitos humanos, entre outras disciplinas. “O fato é que, apesar da lei, a disciplina foi ensinada de uma maneira descontextualiza da própria prática policial”, argumenta Bicalho.

 

Luciane reforça que, quando se pede pela desmilitarização, pede-se por uma oxigenação na instituição, onde as pessoas possam se expressar, questionar ordens: “a militarização me parece um processo muito infantilizado do sujeito. Então vemos pessoas em sofrimento, pois têm apenas que cumprir ordens. Pessoas que acabam tendo uma conduta irreconhecível pela própria família quando se tornam policiais”.

 

“Não consigo pensar que o policial seja violento por que ele quer. O treinamento dele e a forma como funciona a instituição fazem com que essa violência seja exacerbada”, enfatiza a psicóloga, que atribui a violência policial à política de segurança e aprisionamento que o Estado adota.

 

Atuação policial durante manifestações Foto: Caco Argemi / Especial

 

O papel do Estado

 

Conforme o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estamos diante de um “mata-mata” extremamente cruel, que incentiva a ideia de policial vingador, porém não oferece aos quase 700 mil policiais nada além de uma insígnia de herói quando de suas mortes em “combate”, que atingiram, em 2015, o número de 393, inferior aos 409 de 2014.

 

Qual seria o papel do Estado frente a este quadro estarrecedor? Letícia afirma que o Estado é responsável, seja através da atuação violenta da polícia, seja pela insuficiência das políticas sociais, seja por sua não presença nas comunidades provendo bens e serviços públicos.

 

Para o filósofo Marco Weissheimer, que deu aulas de ética e cidadania para policiais civis e militares durante seu mestrado em filosofia na UFRGS, no período do governo de Olívio Dutra, formalmente o “comportamento da polícia é responsabilidade do Estado, diretamente ou por omissão".

 

No entanto, para Azevedo, atualmente há uma tendência de governos estaduais não interferirem diretamente. “Muitas vezes há acomodação, governos não tomam iniciativa para que melhore”, diz o professor de Direito, que também destaca a resistência corporativa encontrada por alguns governos.

 

Bicalho considera a violência exacerbada uma política de Estado. O grande problema está na lógica de guerra às drogas, que produz muitos corpos: “precisamos mudar nossa racionalidade. Enquanto operarmos a partir de uma lógica de guerra, continuarão morrendo policiais e não policiais”.

 

Segundo ele, os policiais não estão, de modo algum, preparados para irem às ruas. “O profissional está submetido a um tipo de lógica que não há psicologia que dê conta”, ressalta.

 

O papel da sociedade também pesa ao falarmos da letalidade da polícia. Em pesquisa recente do Datafolha-FBSP, 57% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”.

 

“Numa sociedade que legitima práticas violentas contra determinados indivíduos, a polícia se sente legitimada a atuar de determinada maneira”, avalia Azevedo.

 

Foto: Caco Argemi / Especial

 

Racismo institucional

 

Conforme análise da Anistia Internacional, 79,1% das vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, são negras e pardas.

 

Na visão do professor da Escola Vereador Antônio Giúdice (bairro Humaitá, em Porto Alegre), Manoel José Ávila da Silva, há dois componentes a considerar ao analisar o racismo da polícia: o histórico, desde o Brasil colônia, que criou a polícia para perseguir os negros; e a função de controle social, destinada à população mais pobre. “Está no histórico conter os movimentos sociais. É uma política funcional ao Estado escravista”, salienta Silva, que costuma dividir a polícia entre a dos ricos (civil) e a dos pobres (militar).

 

“O Brasil é um dos países com altos índices de racismo institucional”, argumenta, “e o sujeito envolvido numa corporação policial repete o modelo institucional, embora pudesse ter a escolha ética. Acaba se abrigando nessa coisa de que está cumprindo ordens”.

 

Azevedo ressalta a seletividade policial existente. Tanto na ação policial quanto no sistema prisional, pobres e negros acabam sofrendo. “A questão racial tem um peso, e há situações que isso é um dos fatores que mais pesa”, avalia.

 

“A atuação policial é seletiva, criminaliza e pune com mais intensidade certos grupos sociais: jovens, negros e pardos, pobres e moradores das periferias urbanas”, concorda Letícia.

 

Para Luciane, o problema não está no policial em si, mas na sociedade como um todo: “a polícia é reflexo da sociedade que a gente tem. Se a sociedade é reacionária, racista, preconceituosa, fascista, homofóbica, a instituição policial vai ser também. A gente ainda vive numa escravidão e há, de alguma forma, efeitos da própria ditadura”. Bicalho também evidencia que o racismo constitui a todos. Logo, o policial suspeita mais de pessoas negras.

 

Como combater esse quadro

 

Somos uma sociedade muito violenta e nossas políticas públicas são extremamente ineficientes e obsoletas, enfatiza o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

 

A socióloga Letícia destaca entre ações efetivas uma maior integração entre as polícias e demais instituições do sistema de justiça criminal; a polícia comunitária como princípio de atuação; e a busca de uma resolução racional dos problemas através de planejamento das ações e do uso da inteligência.

 

Bicalho afirma que há, por parte dos policiais, uma deficiência enorme de conhecimento das leis, apesar de eles serem os fiscalizadores.

 

“O policial tem um poder muito grande nas mãos e o treinamento é aquém do que a política produz. São recorrentes intervenções policiais com uma população mais vulnerável, pessoas que geralmente já foram presas”, diz Luciane, que lamenta a política de encarceramento adotada pelo Brasil – a mesma que outros tantos países, como os EUA, já provaram não dar certo.

 

A população penitenciária brasileira, segundo o último relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), passou o número de 600 mil pessoas em dezembro de 2014 – o quarto país com o maior número de pessoas detidas no mundo. O perfil socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo.

 

A Anistia Internacional adverte que superlotação extrema, condições degradantes, tortura e violência continuaram sendo problemas endêmicos nas prisões brasileiras.

 

Os sistemas prisionais da Suécia, da Noruega e da Holanda são tidos como exemplos positivos por Luciane. “Quando eles pensam o sistema prisional sem armamento, já dá pra saber como é a polícia”, argumenta a psicóloga, que também enfatiza o olhar restaurativo ao sujeito, que permite ter outras formas de responder pelo delito. Uma boa iniciativa seria a utilização de casas de detenção menores. Grandes presídios, como o Central, são taxados por ela como depósitos de corpos.

 

Além disso, Luciane ressalta que só fica preso quem é pobre e desprovido de assistência. “A lei no Brasil não é para todos”, enfatiza.

Publicada em 11/11/2016 17:16


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